Vidro (Glass, 2019, M. Night Shyamalan) | Crítica

Adeus à Linguagem
6 min readFeb 11

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Por: João Marco

(Escrito originalmente em 30 de Julho de 2021)

“Eu acredito, eu acredito…”, diz uma das personalidades de Kevin em um dos momentos que antecedem o clímax de Vidro. Uma frase que descreve intensamente a essência dramática do trabalho de Shyamalan no capítulo derradeiro de sua trilogia. E enquanto os dois capítulos anteriores transitavam constantemente entre o realismo e a fantasia, Vidro soa como um legítimo exorcismo do diretor com relação a toda sua filmografia. Curioso que, caso esse fosse o último filme de sua carreira, seria um desfecho literal de toda a sua jornada. Um encerramento que compartilha tanto uma melancolia quanto um senso de esperança, que transpõe o embate de racional e sobrenatural que se vê nos debates de suas obras materializado como premissa.

Basicamente é o olhar definitivo de Shyamalan sobre a relação do espectador com a mitologia do super-heróis, com a fantasia, com a fé e, claro, com o seu cinema. São anos amargando fracassos críticos justamente pela ótica frágil de tentar olhar a sétima arte apenas por uma concepção limitadora sem jamais absorver que, o que existe de mais encantador, é justamente aquilo que é mais ignorado. O indiano mostrou em todos os seus “desastres” algo que poucos diretores que surgiram dos anos 90 pra cá conseguiram exibir: o acreditar no encantamento do seu cinema da maneira mais pura e inocente.

Talvez um dos instantes mais marcantes de Vidro reside em um diálogo de Elijah (ou Mr. Glass), com Hedwig, uma das personalidades da horda, que é uma criança:

- Ur, então qual é o seu superpoder? Sua mente?

[Elijah acena com a cabeça]

- Qual o meu?

- Você tem nove para sempre, certo?

- Sim

- Isso é incrível. Você pode ver o mundo como ele realmente é.

Shyamalan entende algo que poucos diretores na qual operam suas obras dentro da fantasia compreendem atualmente: a real pureza só pode ser vista pelos olhos inocentes e imaginação criativa de uma criança. Seu cinema é “infantil” nesse quesito, já que a fé na qual Shyamalan demonstra ter na fantasia existe dentro de um imaginário infantilizado, doce e repleto de esperança onde, por mais duro que seja o mundo, ao menos a fantasia serve como refúgio. Aqui, para o indiano, ela simboliza a restauração. A crença e o otimismo que as suas obras sempre revelam, em algum nível, vem da transformação de suas figuras em cena dentro de uma base sobrenatural ou fantástica. É a alma das obras que levam suas figuras dramaticamente do ponto A ao B.

É o jovem Cole e o fantasma de Malcolm em O Sexto Sentido, é o padre Hess e sua fé perdida em Deus no Sinais, é Cleveland em A Dama na Água que agradece a Story por ela ter “salvado sua vida”, é a reconciliação de Wahlberg e Deschanel casal em Fim dos Tempos, é o perdão de Becca e Tyler ao seu pai em A Visita e, aqui em Glass, é a esperança que o protagonista, Elijah quer oferecer a humanidade ao mostrar que o extraordinário existe. Se Price é vendido como antagonista (e visto o quão repulsivo foram os seus atos do passado, é uma posição justificável), aqui em Vidro, ele é o verdadeiro herói. Aquele que, acima de tudo, acreditou no quão extraordinária é a humanidade. Se vista com os olhos de uma criança, claro.

Pode-se argumentar que Glass é uma obra metalinguística, já que é Shyamalan expondo tudo que explorou em sua filmografia em uma potência máxima. É uma obra instigante e provocativa em diversos aspectos, seja pelas suas incongruências e “furos de roteiro” não acidentais que revelam como a crença nesse universo é maior que frivolidades como essa em uma obra assumidamente fantasiosa, ou até pela premissa de fazer seus três personagens centrais se questionarem da suas crenças no sobrenatural, em criar neles a dúvida sobre a sua fé. E é nesse ponto que entra uma das figuras mais essenciais de Vidro: a doutora Ellie Staple, personificada por Sarah Paulson. Para além de sua presença física na mise-en-scène, com seu tom de voz suave e sua manifestação sobrenatural que engole os protagonistas naquele espaço, ela é a essência que contraria toda a fantasia naquele contexto. Nesse caso, Ellie não difere de Harry Farber, interpretado por Bob Balaban em Lady in the Water.

Assim como Farber, Staple ridiculariza e enxerga como completa loucura a crença na ideia de super-seres no mundo e tenta contrariar os seus personagens ao expôr provas “racionais” que desarma a ideia do extraordinário ter se manifestado naquelas “pessoas comuns”. A personagem nada mais é do que o reflexo de uma observação recorrente na carreira do cineasta, que herda uma negatividade fechada apenas a uma ótica realista limitante, frágil e que jamais permite o espectador testemunhar o quão fascinante é o que está presenciando em tela, ainda que seja radicalmente diferente de qualquer coisa na qual ele esteja habituado. Staple representa a ausência da fé no cinema, através da descrença no místico.

E se o projeto de Shyamalan já reflete uma essência provocativa nesses pequenos detalhes da construção imagética da sua obra, é no ato final que o cineasta incorpora o completo desapego com qualquer expectativa do seu público. Em tempos de grandes batalhas como clímax de uma produção do subgênero de super-heróis vide Vingadores: Ultimato, lançado apenas 3 meses após Glass, o que é coordenado pelo indiano aqui é a definição completa de coragem e frustração. Se a promessa de um grande desfecho, catártico e repleto de cores, sons e efeitos é concebida, o que vemos no desfecho é um anti-clímax poderoso ao encerrar a obra e centralizar o embate entre os personagens em um estacionamento.

Ignorando o aspecto macro de uma dissolução genérica que o cinema de super-herói ajudou a propagar com o tempo, Shyamalan escolhe o que existe de mais íntimo. É “decepcionantemente amável”, como bem disse o cinéfilo e crítico Davi Lima no seu perfil do Letterboxd. Ele fecha o arco, mata seus protagonistas, mas revela as verdadeiras almas de Vidro, que sequer era o próprio Elijah: Joseph, Casey e a mãe de Mr. Glass.

Através de toda a construção dos personagens, essas três figuras foram de extrema importância, em especial, por serem um dos poucos que demonstram crer profundamente no sobrenatural (Joseph acredita desde o dia que descobriu que seu pai era um super-herói, quando era uma inocente criança), e, através da fé que revelam possuir, são aqueles que propagam ao mundo que o extraordinário é real. O sobrenatural, a fantasia, o místico existe. Ele é real. Basta apenas acreditar.

O último plano de Vidro é aquele que, certamente, permeia a mente do indiano: rejeitado por crítica e público, transformado em piada e chacota durante anos, o realizador expressa em cada frame, cada pequeno momento, cada detalhe da sua encenação um completo e puro amor naquilo que faz. Ele crê nesses mundos de habitantes de mundos aquáticos, super-heróis, fantasmas, alienígenas, entre outros como uma fuga do pessimismo da realidade que vive.

A fantasia, para além de uma ferramenta de restauração, um refúgio na qual, por breves momentos, ele pode ser uma criança novamente. Pura, sonhadora e esperançosa. No final, é como bem ilustra a sequência do Lady in the Water na qual Heep precisa se comportar como uma criança para que descubra o resto da história. Shyamalan quer que, ainda que durante 2h, voltemos a doçura de vermos o mundo por olhos infantilizados, repletos de fé.

Só resta ao público uma coisa para alcançar isso: acreditar.

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Adeus à Linguagem

um pequeno blog de cinema. mesma página, só mudei de casa.