Falas da Terra Apresenta: Histórias (Im)possíveis (idem, 2023, Thereza de Medicis e Graciela Guarani) | Crítica

Adeus à Linguagem
3 min readApr 18

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Por: João Marco

É que as vezes eu… tenho vontade de falar da gente sem precisar de tudo que a gente já perdeu”.

A frase acima que Luara (Ellie Makuxi) diz em certo ponto de Pintadas, o episódio mais recente da minissérie Histórias (Im)possíveis é trágica de um modo que transcende o média-metragem de 30 minutos e, infelizmente, encontra a nossa realidade brasileira e a nossa relação com as raízes do nosso país. Se deparar com notícias como essa dia após dia é encarar um passado de feridas que sangram externamente, mas que sua maior dor é a interna. É o receio que a mesma personagem do trecho que abre esse texto sente ao constatar que a área na qual entra ao lado de sua prima Josy (Dandara Queiroz) e Michelle (Isabela Santana) é habitada por capangas de fazendeiros. É o trauma que, dolorosamente, atravessa gerações e materializa os fantasmas de um passado em ameaças que se diferem em aparência, mas se assemelham em intenções. Pensando nisso, não seria espantoso se a ameaça dessa obra fosse um ex-militar e deputado acostumado a fazer sinal de arma como símbolo de seu autoritarismo.

Curiosamente, o mesmo sujeito facilitou a destruição de uma tribo inteira justamente pela incapacidade de enxergar algo além de seu preconceito ou desejo sanguinário e desumano. A dor de uma cicatriz interna se manifesta através da arte, aqui, pelas canções de rap de Josy que, segundo a personagem, é a única forma de “não deixar de existir”. É através da voz - e, no caso de Pintadas, pelo audiovisual - que se constrói a intensidade de um discurso, de um grito por resistência que ecoa tal qual os rugidos da onça ferida que Michelle captura no microfone.

A direção de Medicis e Guarani encontra nessa relação das três protagonistas com a natureza, seja o animal doente ou a última árvore restante em meio a um desmatamento, um vínculo transcendental poderoso que restaura as dores do tempo que sequer conseguem ser verbalizadas. Nesse ponto, a relação esteticamente artificial de Luara com a onça no plano encontra um viés fantástico dentro da restauração cênica, de um espaço tão ordinário (uma casa abandonada) que ocasiona uma transformação tão comovente.

É através da jornada intimista de Luara que se manifesta o centro do discurso de Pintadas, na qual a sua fuga é uma forma de omitir as marcas internas que carrega, expurgadas através de um segmento brilhante na qual presenciamos o seu choro através de um close-up hipnótico, complementando suas lágrimas ao evidenciar que existem coisas difíceis de serem verbalizadas quando se tem 13 anos. É a sua angústia interna de retornar a sua aldeia, pressionada e inicialmente julgada por Josy que revela o desespero na qual a mesma sente em reviver as aflitivas lembranças de um passado que prefere enterrar. Por isso mesmo que o clímax ganha um tom de fábula ao mediar no quadro o encontro do real com o fantástico para assim, possibilitar uma restauração interna tão única.

Por conta disso, a última imagem de Luara é a personagem olhando diretamente para o espectador, respondendo com um sorridente “sim” quando a sua prima lhe questiona se está melhor. Tal momento se interliga com o plano aéreo da floresta, evidenciando o otimismo de Pintadas em falar de um povo sem a necessidade de pressionar feridas abertas, mas de encontrar a restauração através do extraordinário, da fé, da arte e, acima de tudo, da empatia. Do abraço que não apaga a cicatriz, mas repele sua dor e encontra sua resistência na união e no afeto.

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Adeus à Linguagem

um pequeno blog de cinema. mesma página, só mudei de casa.