Hotel Mekong (Mæ̀ k̄hong ḥotĕl, 2012, Apichatpong Weerasethakul) | Crítica
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Por: João Marco
“Filme-aquário”
Esse foi o termo utilizado pelo crítico de cinema Pablo Villaça em seu texto sobre Hotel Mekong há 11 anos atrás, enquanto cobria o Festival do Rio. Recentemente, ao ler sua perspectiva do filme, me peguei refletindo sobre o termo e o que ele realmente queria indicar. Nas palavras do Villaça - em um tom descompromissado, não levando a sério o termo, mas usando ele como uma forma de expressar seu descontentamento com a obra em questão - , os filmes-aquário são “obras que compõem o ambiente, mas não são essenciais a este; você pode olhar para a tela ou não; ler as legendas ou não; sair da sala e retornar a qualquer momento e ele continuará lá sem que você tenha perdido algo importante; é perfeitamente natural contemplá-lo por um longo tempo enquanto pensamos em qualquer outra coisa; e, finalmente, você pode discuti-lo após observá-lo ou não, já que isto não fará qualquer diferença e nada de realmente relevante surgiria da conversa.”
Logicamente, como disse antes, o termo foi uma forma de brincar com o fato do crítico em questão ter uma experiência negativa com a obra. Contudo, essa reflexão me fez pensar um pouco na maneira como o público encara o cinema de Apichatpong, mais especificamente, os espectadores que saem de seus filmes com a sensação de um vazio - tampouco injustificável, afinal é sempre bom lembrar que a arte nunca é exata e sensações diversas podem surgir de um filme, um livro ou até mesmo uma canção.
Não acho injusto ou errado tais interpretações que lidam com essa dita “superficialidade” nas imagens do cineasta, mas é interessante como o mesmo que se aplica a alguém como Weerasethakul serve para outros diretores - muitos deles estadunidenses ou europeus - que, parafraseando o Villaça, “compõem o ambiente, mas não são essenciais a este”. Consigo pensar em artistas como Yorgos Lanthimos, Alejandro González Iñárritu e até mesmo Charlie Kaufman. Realizadores que criam sim, obras em algum grau fortemente contemplativas, mas tão frívolos em seus efeitos, tão superficiais em suas admirações e que, ao fim, ainda que sejam mais diretos em algo que desejam expressar, nenhuma discussão leva a lugar algum e nada de muito relevante vai surgir de um debate a respeito deles - e caso apareça uma ou outra fagulha, são tão rasas que jamais vão além do óbvio, o que considero ainda pior.
Abri esse parêntese para citar o Villaça e esse texto a respeito do filme de Apichatpong Weerasethakul justamente pelo fato dele revelar muito sobre uma certa relutância da cinefilia em aceitar filmes que, abstratos por natureza, não entregam algo imageticamente claro, mas embaralham cada um dos seus quadros em prol de desnortear e encontrar no público um outro tipo de sensação. Ao contrário do que se aprende, um filme não precisa “ser entendido” ou ser lógico no que vai contar, mas ser coerente com sua abordagem do inicio até o fim. O jogo aqui não é decifrar, entender os simbolismos, os ícones ou buscar por um “ending explained” após os créditos subirem. O que torna o cinema poderoso é a arte de encantar, de deslumbrar até mesmo com o incompreensível ou com o aparentemente vazio. Parece contraditório, visto que citei acima exemplos de diretores que teoricamente executam isso, mas a questão é que os três casos que mencionei fazem justamente o oposto: sacrificam a beleza de seus registros em prol de seu fascínio por simbologias estapafúrdias.
Pois bem, o mesmo não ocorre com Apichatpong e, claro, não se repete em Hotel Mekong.
A princípio, é uma experiência que tem contornos de um esvaziamento, de uma falta de propósito que mais se interessa pelos seus efeitos do que pela sua progressão narrativa. E, nesse sentido, Apichatpong entende o apelo e guia sua obra através dessa divagação metafísica que lida com fantasmas, com a ideia de morte e espiritualismo sem jamais se posicionar como a estrela de sua projeção, se opondo a alguém como Iñárritu e sua insistente necessidade egocêntrica de ser maior que as próprias imagens. Nada aqui é minimamente pensado para ser desvendado ou ser minimamente contextualizado, nada clama por um sentido… o cineasta entrega o mais puro deslumbre pelo incompreensível enquanto lida diretamente com essa aura fantasmagórica de imagens inertes. Sua perspectiva estática que tanto afasta os espectadores revela algo de poderoso e inexplicável em vislumbrar o que está em cena. Claro, é compreensível que tal viagem seja encarada como “tola” ou “vazia”, mas é nisso que reside sua força: capturar o ordinário através de suas lentes.
Sua abordagem imóvel, com a câmera sempre parada e os movimentos calmos de seus intérpretes transmitem uma pacificidade única que transitam por conceitos tão complexos sem tentar entendê-los, mas possibilitando que o espectador contemple cada um deles através de imagens marcantes que mediam essa relação entre os vivos e os mortos em meio ao espaço que os rodeiam. E, nesse sentido, cabe ao espectador se deixar levar pela jornada sensorial sem indagações constantes ou dissecações auto-congratulatórias que mais parecem uma salva de palmas do cineasta para si mesmo.
Sei que é estranho e talvez esse texto soe prólixo e descartável demais para alguns cada uma das coisas que mencionei aqui, mas isso se deve a um detalhe: Hotel Mekong não se guia por um arsenal de artifícios com a câmera ou com a imagem, mas é fiel a sua noção formal e utiliza seus quadros para despertar sentimentos ao invés de reflexões. Como mencionei em alguns instantes durante o texto, assistir ao filme de Apichatpong é uma viagem. Tal trajeto pode causar as mais variadas impressões, mas no final das contas, Weerasethakul quer mais que o seu público se admire por tudo que está em cena, seja algo facilmente compreensível ou não.
Então sim, é um “filme-aquário”. Mas poucas vezes foi tão esplêndido observar um aquário cinematográfico como este.