Sherlock - 1x1: A Study in Pink (BBC, 2010) | Crítica
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Por: João Marco
Durante uma das montagens que evidenciam o processo investigativo e analítico do detetive criado por Arthur Conan Doyle, vemos Sherlock Holmes (Benedict Cumberbatch) ler a pista “rache”, feita pela vítima ao arranhar o chão, através de sua tradução do alemão onde a palavra significa “vingança”, algo que o detetive Anderson (Jonathan Aris) reitera ao adentrar na cena do crime. Tal pista vai além de um mero aceno para a obra que o inspirou (o clássico “Um Estudo em Vermelho”), mas a inversão das evidências (“rache” no livro, tem o sentido que Holmes despreza aqui) revela mais da natureza acerca da releitura contemporânea de Mark Gatiss e Stephen Moffatt do que aparenta na primeira impressão.
Se, no livro de Doyle, a motivação do assassino era emocional, motivado pelo sentimento inflado de vingança, aqui, as razões ganham contornos um tanto quanto ambíguos. Sim, a tal pista “rache” permanece carregada pelo impulso dramático, mas agora em posições diferentes, sendo aqui no seriado ocupada pela própria vítima do crime. Em tempos de informações e estímulos que se aglomeram constantemente, de imagens e gestos corridos, algo tão elaborado quanto o plano exposto no material original parece menos plausível. É necessário algo mais direto, tal qual a montagem que intercala entre momentos antes, durante e após a morte das vítimas na abertura, revelando informações difíceis de serem diluídas com sutileza em um jogo de cena bem objetivo - destaque para o caso extraconjugal, expressado através dessa dinâmica de imagens mais “imperativas”.
Por isso mesmo que, em um mundo na qual deduções imediatas são automaticamente validadas como fatos irrefutáveis, a figura de Holmes seja encarada com maus olhos, afinal, qual a razão de esmiuçar milimetricamente um crime na qual a resposta é, aparentemente, tão “óbvia”? Nesse sentido, é interessante pensar como Athelney Jones, investigador policial que surge nas páginas da segunda aventura do detetive britânico, “O Signo dos Quatro”, se mostra tão relevante quanto na época em que se encontrava - ainda que claramente ausente nesse piloto do seriado - , uma vez que a maioria utiliza de seu raciocínio direto e limitado como “modelo”.
Nesse sentido, até a brincadeira que Gatiss e Moffatt criam a respeito da dúvida dos personagens ao redor de Holmes sobre ele ser ou não um provável psicopata é eficaz dentro da perspectiva do seriado: ora, quem se interessaria tanto ou expressaria tamanho entusiasmo com um assassinato que, na prática, já possui uma “solução” evidente? Sherlock aqui é uma figura deslocada de seu tempo, antiquada em uma sociedade na qual enviar uma mensagem para múltiplos celulares é executada em um clique. Holmes pode até se modernizar em seus gadgets e meios de chegar a resposta do mistério, mas seu método de investigação tampouco é capaz de se adaptar aos tempos atuais.
E, nesse choque entre o velho e o novo, é que se torna possível a reimaginação de Holmes e Watson na Londres dos anos 2010, em um mundo cada vez mais engolido pela tecnologia, vivendo nela e completamente deslocados de seu tempo. Curioso perceber como, até na cadência de pronunciar suas deduções, o Holmes de Cumberbatch é mais enérgico do que a persona centrada e relativamente serena elaborada por Doyle; méritos de Gatiss, Moffatt e Benedict ao fazer a leitura mais prepotente do detetive, justificando seu brilhante raciocínio e sua observação perspicaz através de sua insensibilidade moderada, arrogância e menosprezo pelos colegas ao seu redor devido a uma certa “inferioridade” em como os enxerga, complementado por um leve grau de irritabilidade e ironia. E quem complementa tudo isso é o Watson de Martin Freeman através das reações cômicas do intérprete e que Gatiss e Moffatt compreendem bem o valor delas ao quase sempre focar nelas no plano.
Eficiente ao encontrar soluções para transportar uma narrativa do século 19 para o Reino Unido em meio a era digital, o piloto de Sherlock joga o detetive em um conflito temporal na qual, independentemente de sua eficácia, seu posto continuará sendo “obsoleto”.
Todavia, poucos tem o privilégio de serem “obsoletos” como a criação de Arthur Conan Doyle.