Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (Lung Boonmee raluek chat, 2010, Apichatpong Weerasethakul) | Crítica

Adeus à Linguagem
3 min readMar 22

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Por: João Marco

Em sua essência, o cinema do tailandês Apichatpong Weerasethakul é sobre um constante encontro do concreto com o místico, o inexplicável atuando em meio a vida de seus personagens e encontrando em seus registros algo de realmente valioso e único que se torna difícil de expor em palavras. Um choque entre a natureza e sua força ilusória e a maneira que atua no cotidiano de cada um em cena. Aqui, em Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas, isso se torna ainda mais gritante, transformando uma circustância simples (no caso, o Boonmee do título e o sentimento de dias contados por decorrência da sua doença nos rins) em uma viagem encantadora sobre fantasmas do passado, reencarnação, a iminência da morte e o tempo.

Claro que, tal qual ocorre com Hotel Mekong, isso tampouco é verbalizado de alguma maneira. Pelo contrário: a jornada proposta por Weerasethakul é puramente imagética, onde o audiovisual contempla cada pequeno instante de seu trajeto com um fascínio ímpar até mesmo pelos menores detalhes, seja ao capturar o movimento de um animal durante os minutos iniciais de sua projeção ou um grupo de personagens assistindo a televisão em seu quarto. Sua tendência por prolongar o tempo de cada um dos momentos citados acima podem conferir a alcunha de “vazio” - algo costumeiro de usarem para comentar os seus trabalhos - , mas encontra na dilatação dos minutos em eventos tão banais a força necessária para dissertar sobre a nossa incapacidade humana de modelar o tempo, aceitando que não existe esforço suficiente da espécie para controlar algo que é tão ambíguo.

Somos levados a admirar o que existe nesse tempo disposto em tela não apenas pela sua beleza, mas em detrimento da sua preciosidade, do quão único cada um daqueles instantes se tornam através das lentes do cineasta tailandês. É fascinante ver o deslumbre de Apichatpong por suas imagens aumentar a medida que sua narrativa ganha contornos místicos, onde uma aparição espectral se materializa de modo tão natural que salta aos olhos quando percebemos a sua presença no quadro. Um simples jantar comporta um evento tão grandioso, porém gravado de modo diminuto, íntimo e sob a perspectiva de um reencontro familiar. Nesse ponto, sua narrativa só reforça outro componente expressivo de sua filmografia: a incapacidade humana de lidar com algo grandioso como a natureza. É ao mostrar a família adentrando uma caverna que o cineasta tem a oportunidade de embarcar em um segmento tão delirante em seus efeitos no público e em como a câmera adentra naquele ambiente que constitui um caráter extraordinário em algo que, essencialmente, seria descrito - e até filmado - sem buscar por tal peso.

A verdade é que Tio Boonmee não é uma experiência fácil de explicar - não em busca de um “sentido”, mas de relatar o impacto causado e as ferramentas usadas para atingir esse efeito. Tal qual outros do cineasta, é uma viagem tão deslumbrante, singular e diminutamente sublime que se torna um desafio encontrar palavras agradáveis o suficiente para definir algo como isso. Provavelmente, não devo ter alcançado êxito em comentar sobre qualquer um dos seus longas que publiquei algum texto por aqui, mas sei que o sentimento de admirar suas imagens estáticas é real o suficiente para saber que, cada revisita a esse universo particular será um verdadeiro evento.

Dificilmente vou conseguir explicar o que sinto pelo cinema de Apichatpong - e em especial, por essa obra monumental.

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Adeus à Linguagem

um pequeno blog de cinema. mesma página, só mudei de casa.